MUTAÇÃO JURISPRUDENCIAL E RESPONSABILIDADE CIVIL DAS LOCADORAS DE VEÍCULOS: A SUPERAÇÃO DA SÚMULA 492 DO STF JURISPRUDENTIAL MUTATION AND CIVIL LIABILITY OF THE VEHICLE RENTAL COMPANIES: THE OVERCOMING OF THE SUMMARY 492 OF THE STF

Claudiane Aquino Roesel 1
Maria Flávia de Freitas Ferreira 2

Resumo

A presente pesquisa pautou-se no estudo dos precedentes que culminaram na elaboração da Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal, a fim de demonstrar a sua incompatibilidade com a atual ordem jurídica. Foi demonstrado que a responsabilidade subjetiva constitui a base teórica da Súmula 492, ao passo que a sua aplicação leva em consideração a responsabilidade objetiva, que sequer foi cogitada na elaboração daquele entendimento. Objetiva-se
conscientizar o operador do direito da importância de utilizar a sua capacidade de “reelaboração de uma experiência”, não sendo adequada a aplicação acrítica de uma súmula editada em um contexto histórico completamente distinto do atual.

Abstract/Resumen/Résumé

This research studied the precedents which culminated in the drafting of the Precedent 492 of the STF, to demonstrate its incompatibility with the current legal order. It was demonstrated that the subjective responsibility constitutes a basis of the Precedent, while its implementation takes into consideration the strict liability, which hasn’t been contemplated in the drafting of the understanding. It is intended to make the operator aware of the right of the measure of his ability to “re-elaborate an experience”, and is not appropriate for an uncritical application of a Precedent edited in a historical context completely different from this one.

1 Introdução

O direito da responsabilidade civil contempla não apenas a responsabilidade direta do autor do dano, com a consequente atribuição de sua obrigação de indenizar a vítima, como também prevê hipóteses nas quais terceiros são responsabilizados por atos praticados por outrem.
Essa possibilidade é expressamente contemplada no Código Civil de 2002 e a jurisprudência, a seu turno, encarregou-se de ampliar as hipóteses de responsabilidade civil por fato de terceiro. Um dos exemplos típicos dessas novas modalidades de responsabilidade por fato de outrem consiste na responsabilização das locadoras de veículos pelos danos causados pelos locatários, consolidada pelo STF em sua Súmula 492.
O objetivo deste trabalho consiste em demonstrar os motivos pelos quais a Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal tornou-se desatualizada, não mais devendo ser aplicada nos casos de locação de veículos. Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental, analisando-se as decisões judiciais que deram origem à Súmula 492. Foram também identificados, selecionados e analisados julgados contemporâneos, que reconhecem a superação do entendimento sumular, bem assim projetos de lei que conferem nova disciplina jurídica à responsabilidade civil das locadoras de veículos. Finalmente, foi feito um levantamento da literatura jurídica, a fim de
demonstrar que os pressupostos que originaram a Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal foram alterados, tornando-se necessário revisitar o tema, em busca de uma nova disciplina jurídica para a responsabilidade civil das locadoras de veículos.

2 O estado da questão

Atualmente, 13% dos veículos fabricados no Brasil têm como destinatárias as locadoras de veículos, que desempenham um papel fundamental na sustentação da indústria automotiva, que, sozinha, representa 25% da produção industrial no País (ABLA, 2016).
Faz-se necessário, portanto, verificar se a disciplina jurídica da responsabilidade civil das locadoras de veículos encontra-se consentânea com as demandas do setor e, também, se ainda é capaz de oferecer uma proteção adequada às eventuais vítimas dos locatários de veículos.
A Súmula 492 foi editada pelo STF em 1969, época em que a locação de automóveis era atividade em fase extremamente embrionária de implantação, e os poucos casos que deram origem à referida Súmula eram referentes a acidentes ocorridos nas décadas de 50 e 60 – época em que ainda estava nascendo a própria indústria automobilística no Brasil. Os fundamentos do verbete sumular, assim, destoam da realidade atual, ensejando novos estudos teóricos.
Essa situação foi analisada no Projeto de Lei nº 7.649, de 2010, de autoria do Deputado Federal Vanderlei Macris, para quem “… os locatários de veículos respondem exclusiva e isoladamente pelos danos que causarem, por atos próprios, a terceiros em decorrência da utilização de veículo locado” (Projeto de Lei nº 7.649, de 2010, foi apresentado pelo ilustre Deputado Vanderlei Macris com o intuito de estabelecer que). De acordo com o referido Projeto, o locador, ao disponibilizar o veículo para utilização pelo locatário, transferiria nesse momento a posse direita do bem, não podendo, por isso, responder pelos danos causados por ele a terceiros, tendo em vista que o simples ato negocial de disponibilizar um veículo para locação, observados todos os deveres de cuidado, não caracterizaria prática que justificasse ou autorizasse a responsabilização solidária do locador. Tal como ocorre com o contrato de arrendamento mercantil, transfere-se apenas a posse para o contratante, o qual passa a ter responsabilidade pela conduta de seus agentes e/ou empregados no uso do bem.
Corroborando esse entendimento, já entenderam os tribunais que

[…] a Súmula 492 do STF, para efeito de responsabilização solidária da empresa locadora de veículos, somente pode ser aplicada quando se tratar de responsabilidade civil subjetiva (art. 186 do CC), em que se
analisa culpa, que tem como fundamento a negligência, imperícia ou imprudência, ou seja, aqui o que existe é a comprovação do nexo causal entre o erro de conduta da locatária e o dano sofrido pelo Autor, sobretudo porque não há previsão em lei acerca da responsabilidade civil objetiva no que tange aos contratos de locação (art. 927 e ss. do CC).( TJPR – 1ª C.Cível – AC – 1367716-6 – Curitiba – Rel.: Fernando César Zeni – Unânime – – J. 30.06.2015)

Da mesma forma, tem-se o entendimento adotado pelo M.M. Juiz de Direito do Juizado Especial Cível da Comarca de Barra do Garças/MT, in verbis:

“(…) Contudo, no caso dos autos, cuida-se de locação entre pessoas jurídicas, na qual a locadora cedeu em locação à locatária também pessoa jurídica o veículo que se envolveu no acidente. Nesse caso, a empresa locadora transfere à empresa locatária, juntamente com a posse do bem, o poder/dever de exercer a atividade in vigilando do condutor do veículo. PORTANTO, A LOCATÁRIA, ESTA SIM, A PESSOA JURÍDICA QUE PODERÁ RESPONDER PELOS ATOS PRATICADOS POR QUEM SE ENVOLVER EM ILÍCITO QUANDO NO USO DO BEM EM QUESTÃO. Isto porque uma pessoa jurídica, por si só, não reúne meios de ela própria conduzir o veículo, necessitando de agentes sob o seu comando para exercer essa função e a responsabilidade objetiva pela reparação do dano só pode ser imputada à pessoa jurídica sob o comando de quem o agente produziu o ilícito. Da leitura dos autos, confirma-se que o vínculo do condutor do veículo não se dava com a locadora e sim com a locatária SADIA S.A. Com tais considerações, acolho a preliminar de ilegitimidade passiva da Companhia Locadora das Américas, excluindo-a da lide. (…)”. (Numero do Processo: 0011022- 34.2012.811.0008 – Polo Ativo: GLEIMATER DE SOUSA CAMILO – Polo Passivo: GINALDO DA SILVA CRUZ,SADIA S/A,COMPANHIA DE LOCACAO DAS AMERICAS – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO – JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DE BARRA DO GARÇAS). (Destacamos)

De acordo com a pesquisa realizada, os precedentes da Súmula 492/STF baseiam-se em julgamentos proferidos com base na teoria da responsabilidade subjetiva, exigindo-se a prova da culpa do agente causador do dano, isto é, erro de conduta, nas modalidades de imperícia, negligência ou imprudência. A sua incidência, hoje, violaria diversos dispositivos infraconstitucionais editados posteriormente à sua criação, não mais podendo servir como parâmetro de julgamento.
A solidariedade entre o locador e o locatário, constante da Súmula 492/STF, necessariamente exige prova de que o veículo que foi alugado tinha defeito mecânico ou qualquer outro eventual vício que pudesse de qualquer forma concorrer para a ocorrência do acidente. Como o contrato se deu com pessoas capazes e habilitadas para a contratação, não se pode imputar qualquer falha por parte da locadora, a qual sequer tem o poder de vigilância sobre o bem que estava sendo utilizado. A locadora é seguradora exclusivamente das obrigações previstas em contrato, não se admitindo interpretação extensiva.
Atualmente, a referida Súmula vem sendo aplicada de maneira plena, sem qualquer restrição por parte dos tribunais, que a interpretam literalmente. No entanto essa orientação do STF deve ser interpretada em termos, haja vista que não houve decisão do Supremo definidora da responsabilidade objetiva das empresas locadoras de veículos em casos de danos causados pelos locatários a terceiros pelo simples uso do veículo locado. É importante registrar que os precedentes que deram origem ao enunciado sumular não fazem menção à responsabilidade objetiva.
A Súmula 492/STF teve como causa originária precedentes que trabalharam com a concepção da culpa subjetiva. Da leitura das ementas e dos julgados, em momento algum foi feita alusão à responsabilidade objetiva, sendo possível verificar que as causas que deram ensejo ao enunciado têm como premissa fática fatos diversos da referida responsabilidade e que tem lastro em análise da culpa. De fato, os precedentes se pautam no antigo art. 159 do CC (atual art. 186, CC/2002), que trata da responsabilidade civil subjetiva como regra definidora do dever de indenizar e em momento algum foi feita alusão à responsabilidade objetiva.
A fundamentação legal das referidas decisões é o antigo art. 159 do Código Civil de 1916, o qual estabelece que o autor da ação ou da omissão é o responsável pela reparação dos danos em decorrência de ato ilícito. Se, no caso do veículo locado, quem tiver causado o dano foi o condutor do automóvel que está em posse da locatária, sobre o seu erro de conduta deve ser apreciada a prova para determinação da responsabilidade.
Também é importante destacar que a solidariedade não se presume, decorrendo de lei ou da vontade das partes, de acordo com art. 265 do Código Civil. E, dentro da morfologia das obrigações solidárias, o devedor que satisfaz a dívida tem o dever e o ônus da prova para cobrar de outro co-devedor a parte que pagou em seu nome, segundo dicção do art. 283 do Código Civil.
Para aplicação da Súmula 492 do STF, deve ser feita a análise dos fatos sob o conceito da responsabilidade civil subjetiva e não simplesmente afirmar que o proprietário também responderá pelos danos causados por veículo objeto de locação, visto que caberia à locadora comprovar defeito no automóvel e, ainda, que tal defeito foi suficiente para a ocorrência do acidente.
Registre-se, para todos os efeitos, que a Súmula em referência não tem aplicabilidade aos sinistros de uma forma geral, ocasionados ou não pelo locatário, mas sim deve ter sua aplicabilidade pautada na responsabilidade subjetiva, hoje tratada no art. 186 do Código Civil de 2002.
Para que haja uma interpretação adequada, prudente e absolutamente jurídica, faz-se necessário atentar-se à demonstração das circunstâncias fáticas e jurídicas que indiquem que a continuidade da aplicação da Súmula implica significativos danos para as locadoras de automóveis, pois estas vêm sofrendo relevantes prejuízos e não raras vezes têm sua sobrevivência financeira ameaçada por conta de uma interpretação equivocada e sem qualquer respaldo legal da Súmula 492 do STF.
Assim, é da locatária a responsabilidade pelo acidente envolvendo veículo alugado. Não se pode falar, nessa hipótese, em responsabilidade pelo fato da coisa (responsabilidade da pessoa que detém o poder de comando da coisa) porque a locação transfere a posse direta do veículo para o locatário, de sorte que o locador não mais detém sua guarda, nem material, nem intelectual, conforme entendimento de SERGIO CAVALIERI FILHO, que assim leciona:

“Quem é o responsável pelo fato da coisa? Aqui também não se pode responsabilizar arbitrária e indiscriminadamente qualquer pessoa, mas somente aquela que tem relação de fato com a coisa, isto é, que tem um
certo poder sobre ela. (…) Normalmente, quando se busca o responsável pelo fato da coisa, a primeira solução que se apresenta, até intuitivamente, é responsabilizar o dono da coisa. Essa regra, embora funcione na maioria dos casos, geraria injustiça e, determinadas hipóteses. (…)

Responsável pelo fato da coisa só pode ser o seu guardião. Daí proclamar Genevière Viney – citada por Caio Mário – que o guarda é hoje a noção-chave, o critério fundamental para se identificar a pessoa responsável pela coisa (Responsabilidade civil, p. 102). (Programa de responsabilidade civil, 12. ed. – São Paulo: Atlas, 2015). (Grifos originais).

Também, reitera-se, não se pode falar em responsabilidade pelo fato de outrem, por não ser o locatário preposto do locador – não há entre eles qualquer subordinação, sendo que “a responsabilidade civil do empregador ou comitente, pelos atos dos seus empregados, serviçais ou prepostos, se justifica pelo poder diretivo desses sujeitos em relação aos agentes materiais do dano, sendo este o seu elemento comum.” (Gagliano, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011).
A locação transfere a guarda do veículo, pois o dever de guarda não se liga, propriamente, à coisa, como já disse, mas ao poder de comando e direção que se tem da coisa, transferência que poderá ocorrer por justo título, como no caso da locação, mas também em razão de um fato irregular ou mesmo criminoso, como no caso de roubo de carro, pois a guarda é um poder de fato e não uma necessária consequência do direito subjetivo de propriedade
Assevera MÁRIO MOACYR PORTO que “A locação de um veículo é uma atividade lícita e o seu normal exercício jamais poderá acarretar para quem o desempenhe qualquer sanção.” (RESPONSABILIDADE CIVIL DAS EMPRESAS LOCADORAS DE AUTOMÓVEIS, in REVISTA DOS TRIBUNAIS, VOL. 600, 1985, P. 20).
No mesmo sentido ULDERICO PIRES SANTOS:

“Se está exercendo seu comércio de acordo com os regulamentos administrativos e comercias, sem concorrer para o evento com qualquer parcela de culpa, ainda que superficial, insignificante, extremamente
tênue, não será apenas injusto, mas antijurídico. Nesse caso, responsabilizar a locadora só pelo fato da coisa nos parece algo sem nexo, irreal e despropositado” (in RESPONSABILIDADE CIVIL NA DOUTRINA E NA JURISPRUDÊNCIA, FORENSE, 1984, P. 433).

Decidir como à época da criação da Súmula é não levar em consideração a evolução da sociedade e do direito; é ignorar que compete ao magistrado a difícil tarefa de “reelaborar uma experiência”, adequando o entendimento sumulado aos posteriores avanços legislativos e sociais, reconhecendo o fenômeno da mutação jurisprudencial, a fim de tornar a sua decisão adequada às necessidades contemporânea.

2 Os fundamentos jurídicos e fáticos da Súmula 492 do STF

Aprovada em 03 de dezembro de 1969, a Súmula nº 492 do Supremo Tribunal Federal estabelece que “a empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causados a terceiro, no uso do carro locado”. À época vigiam a Constituição da República de 1967 e o Código Civil de 1916.
Essa Súmula originou-se dos acórdãos proferidos nos autos dos Recursos Extraordinários (i) 60.477, de relatoria do ministro Antônio Villas Boas; (ii) 62.247, de relatoria do ministro Adaucto Cardoso e (iii) 63.652, de relatoria do ministro Evandro Lins. Esses três acórdãos tiveram como fundamento jurídico a noção de culpa subjetiva da locadora no momento da locação, como se passa a demonstrar.
A primeira decisão que embasou a Súmula 492 STF foi publicada em 1966 e faz menção expressa à culpa da locadora de veículos que, no caso concreto, alugou veículo para pessoa que não possuía habilitação para conduzi-lo. Veja-se a ementa da decisão mencionada:

LOCAÇÃO MERCANTIL DE VEICULOS AUTOMOTORES, PARA USO NAS VIAS TERRESTRES ABERTAS A CIRCULAÇÃO PÚBLICA. ACIDENTE IMPUTAVEL A CULPA DO CONDUTOR DO CARRO ALUGADO. A VERIFICAÇÃO DA CORESPONSABILIDADE DA EMPRESA LOCADORA E,
PORTANTO, DA SOLIDARIEDADE PASSIVA NA COMPOSIÇÃO DO DANO CAUSADO A TERCEIRO REGULA-SE PELO DISPOSTO NO ART. 159 DO C. CIV., QUE DEFINE O ATO ILICITO, E NO CÓDIGO NACIONAL DO TRÂNSITO, ESPECIALMENTE NO ART. 121, PARAGRAFO 4, QUE IMPÕE O MAXIMO DE VIGILANCIA EM TAL ATIVIDADE COMERCIAL. CONHECIMENTO E PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO INSERTO NA LETRA D DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. REFORMA DO ACÓRDÃO QUE SITUOU A QUESTÃO NOS LIMITES DO C. CIVIL.

Destaca-se o voto do Relator, que concluiu pela falta de responsabilidade da locadora, conforme se depreende abaixo:

Nada justificava, na espécie, a responsabilidade da locadora do automóvel. Nenhum texto legal existe autorizando o reconhecimento da solidariedade, a qual não se coaduna, realmente, com o sistema de responsabilidade civil vigente em nosso direito, todo ele assentado na doutrina subjetiva. A prevalecer o entendimento de que as locadoras de automóveis são sempre responsáveis pelos danos que os locatários causarem, por culpa, a terceiros, ter-se-ia que estender tal responsabilidade a limites extremos. Responsáveis seriam aqueles que fabricam os carros, os que facilitam crédito para sua aquisição. E a própria Fazenda Pública, nos desastres causados por imperícia, por ter considerado habilitado, quem, na verdade, não era.

Diante do exposto, resta claro que o entendimento adotado no presente recurso referirse-ia tão somente à solidariedade por parte da locadora em decorrência de sua negligência em não verificar as exigências legais de habilitação do condutor do veículo locado. Portanto, presente o elemento subjetivo da culpa no momento da locação.
O segundo acórdão que originou a Súmula 492, decorre de julgado publicado em 1967, no qual se reconheceu a culpa da locadora quando esta não perquiriu sobre a situação financeira da locatária.
Cumpre transcrever trechos do voto de relatoria do ministro Adaucto Cardoso, in verbis:

Assim, resulta a solidariedade da lei, no caso o invocado artigo 159 do Código Civil, pois que será irrisório pretender-se que proceda com diligência e cautela normais aquele que explora o comércio de aluguel
de automóveis e, com fins de lucro, põe ao alcance de qualquer pessoa, mesmo que regularmente habilitada, a locação de tais veículos, sem antes prover a solvência do usuário, em caso de responsabilidade civil.
(…)
A necessidade de reparar o dano é a mais imperiosa determinação da lei. Daí se ter de conceituar como culposa a negligência, a falta de adequada cobertura da eventual incapacidade econômica do arrendatário, que, como no caso presente, era um desconhecido, que desapareceu sem compor os prejuízos que causou ao recorrente.

Conforme se depreende do trecho acima, verifica-se ter ocorrido a aplicação do instituto da responsabilidade subsidiária, pois a responsabilidade da locadora decorreu da insolvência do locatário.
E por último, a terceira decisão que embasou a Súmula 492/STF foi o acórdão proferido no Recurso Extraordinário 63.562/Guanabara, publicado no ano de 1968, que reconheceu a solidariedade da locadora em relação ao locatário com esteio nos dois julgados anteriores (RE 60.477 e RE 62.247)- incompatíveis, registre-se, com o art. 265 do Código Civil, que estabelece que “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
Infere-se do voto proferido pelo Ministro Relator Evandro Lins a causa da responsabilização da locadora:

O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões, tem aceito a corresponsabilidade da empresa locadora de automóveis e portanto, a solidariedade passiva na composição do dano causado a terceiro (RE 60.477, julgado pela segunda Turma, 07.06.66, relator o Ministro Villas Boas, e RR 62.247, julgado em 15.05.67, relator o Ministro Adaucto Cardoso, 1ª Turma. Essa corresponsabilidade não decorre, apenas, do art. 1521 do Código Civil, mas, também, do art. 159 do mesmo Código, e de disposições do Código Nacional de Trânsito).

O voto transcrito demonstra que deve ocorrer a responsabilização da locadora de veículos quando seja comprovada a culpa da locadora relativamente ao negócio de locação, e não apenas a culpa do motorista quando da ocorrência do acidente.
Logo, os três acórdãos publicados da década de 60, que respaldaram a criação da Súmula 492/STF possuem o requisito subjetivo da culpa da locadora no momento da locação, fundamento determinante que tem sido desconsiderado quando da aplicação Súmula nº 492. Isso fez com que, na prática, se atribuísse equivocadamente a responsabilidade objetiva às empresas locadoras de veículos automotores pelos danos causados pelos locatários.

3 Da não aplicação da Súmula 492/ STF no caso concreto por uso da técnica da distinção

Após a exposição dos três precedentes jurisprudenciais que ensejaram a edição da Súmula 492 do STF, torna-se claro que em todos os fundamentos das decisões a corresponsabilidade da locadora foi condicionada à existência de culpa no momento da celebração do negócio. Vale dizer: a locadora de automóveis foi responsabilizada porque não agiu com a cautela necessária no momento em que disponibilizou o bem para o locatário; os fundamentos de sua responsabilidade, portanto, repousam sobre a responsabilidade subjetiva.
Logo, pode-se concluir que a responsabilização da locadora poderá se dar somente quando existir nexo entre o acidente e uma conduta culposa da locadora, não sendo correto atribuir-se à locadora responsabilidade objetiva quando se tratar de danos causados a terceiros pelo locatário.
Esse entendimento já foi sufragado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

APELAÇÃO CIVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. COLISÃO ENTRE VEÍCULO LOCADO PELO ESTADO, A SERVIÇO DA POLÍCIA CIVIL, E BICICLETA EM CRUZAMENTO NÃO SINALIZADO. SÚMULA 492 DO STF. INAPLICABILIDADE. ENUNCIADO SUMULAR QUE TOMOU COMO BASE JULGAMENTOS EM QUE HOUVE ANÁLISE DA CULPA, OU SEJA, ALUSÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E NÃO OBJETIVA (ART. 186 DO CC). EMPRESA LOCADORA DE VEÍCULOS QUE FIRMOU CONTRATO VÁLIDO COM O ESTADO DO PARANÁ, LOCANDO VEÍCULO QUE NO MOMENTO DO ACIDENTE NÃO APRESENTAVA QUALQUER VÍCIO QUE CONCORREU PARA O ACIDENTE QUE VITIMOU O CICLISTA. ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE CIVIL QUE DEVE FOCAR A CONDUTA DO CONDUTOR DE VEÍCULO E DO CICLISTA. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O FATO DANOSO E A LOCADORA DE VEÍCULOS. ENUNCIADO SUMULAR QUE NÃO TEM EFEITO VINCULANTE. ADEQUAÇÃO DA CULPA NA FORMA DO ART. 945 DO CÓDIGO CIVIL. NEGLIGÊNCIA E IMPRUDÊNCIA DE AMBOS OS CONDUTORES. VIOLAÇÃO DOS ART. 29, INC. III, 105, INC. VI E 214, INC. IV, TODOS DO CTB (CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). REDUÇÃO DO DANO MORAL E MANUTENÇÃO DO PENSIONAMENTO. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. SÚMULA 54 STJ. AGRAVO RETIDO CONHECIDO E PROVIDO, PARA DECLARAÇÃO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DA EMPRESA LOCADORA DE VEÍCULOS, RESTANDO PREJUDICADAS AS DEMAIS MATÉRIAS POR ELA DEDUZIDAS NA APELAÇÃO. RECURSO DO ESTADO DO PARANÁ PARCIALMENTE PROVIDO, PARA RECONHECIMENTO DA CULPA CONCORRENTE, COM REDIMENSIONAMENTO DO VALOR DO DANO MORAL E RECURSO DO AUTOR PARCIALMENTE PROVIDO.

Noutro giro, destaca-se que a locadora, ao celebrar contrato de locação observando os deveres que lhe são impostos pelo Código Nacional de Trânsito, não incorre em qualquer risco não permitido, pois ela está celebrando contrato com pessoa legalmente apta a conduzir veículo automotor, não estando dentro de suas possibilidades impedir ou evitar riscos inerentes ao tráfego viário.
Conforme exposto, a Súmula 492 se originou de acórdãos que se amparavam na ideia de culpa subjetiva, mas acabou sendo equivocadamente aplicada para ditar uma responsabilidade objetiva do locador, independentemente da análise de sua culpabilidade no momento do acidente automobilístico. Houve, portanto, uma extensão de sua esfera de incidência, mas de forma descontextualizada dos fundamentos fáticos e jurídicos dos três acórdãos que embasaram sua criação.
Por fim, tendo em vista a inexistência de norma legal e cláusula contratual que determine a solidariedade, deve-se perquirir o dolo ou culpa do locador de veículos, cuja presença autorizaria a corresponsabilidade por vinculação solidária, na medida em que, conforme estabelece o art. 265 do Código Civil, “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
Não se pode desconsiderar que o Novo CPC incluiu a técnica da distinção (distinguishing), prevista no art. 489, § 1º, que prevê:

Art. 489, § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…)
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (…)

O inciso V afirma que não corresponde a fundamentação a decisão que simplesmente invoca um precedente sem demonstrar a sua pertinência com o caso concreto. Desta forma, a aplicabilidade da súmula por si só não permite a decisão meritória, mas apenas uma repetição, tornando-se imprescindível verificar os pressupostos de fato e de direito de um precedente e a sua eventual correspondência com os do caso concreto.
Portanto, as decisões têm o dever legal de demonstrar as razões da aplicação ou não de um enunciado de súmula ao caso concreto, o que implica a necessidade de análise das particularidades de cada caso, tanto do paradigma e como do caso em exame.

3. CONCLUSÃO

Diante do exposto, o que deve ser registrado, para todos os efeitos, é que a Súmula 492/STF não tem efeito vinculante. A realidade fática que influenciou a sua estruturação não se verifica hodiernamente.
Como consequência, cabe aos magistrados perceberem a nova conformação social e atuar de modo coerente com tal situação, tendo como premissas a construção da justiça e a possibilidade do fenômeno dos princípios da nova legislação, deixando de fazer do julgamento tarefa meramente mecânica.
Assim, os magistrados, com sua capacidade de “reelaboração de uma experiência”, não devem limitar-se a aplicar uma súmula editada em um contexto histórico completamente distinto do atual, mas considerar que o direito aparece como um sistema dinâmico de permanente mudança tratando dos problemas de inserção no mundo contemporâneo.

4. REFERÊNCIAS

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http://www.virapagina.com.br/
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. DOU, 11 jan. 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm. Acesso em: 25 out. 2016.
BRASIL. Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. DOU, 17 mar. 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm. Acesso em: 25 out. 2016.
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CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. rev. E ampl. São Paulo: Atlas, 2015.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Processo: 1367716-6. 1ª Câmara Cível. Relator: Fernando César Zeni. Publicado em 23/07/2016. Disponível em: https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/publico/pesquisa.do?actionType=pesquisar. Acesso em: 25 out. 2016.
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